Scarlett, tão quieta e expansiva. Tão serena e discretamente barulhenta. Tão ruiva e pálida. Tão contemplativa acima de Ventura. Sua pele e pensamentos pareciam ferver, mesmo que um vento a obrigasse a se abrigar em um charmoso moletom vermelho. Sentia-se vazia e ao mesmo tempo transbordava algo que ela não sabia definir. A palavra que se aproximava talvez fosse "esperança". Recusava-se a carregá-la consigo pelo perigo que trazia para ela. Era solitária e abrangente. Abrangia inclusive sua solidão e tentava mudá-la, mas era perigoso. Soube que ele poderia ser uma coisa de uma vida inteira, que a preenchia e amava.
Caminhando até o norte (onde quer que o norte fosse dar), tinha um livro em mãos. Em meio às lentas piscadas desfrutando do vento que lhe acariciava os cabelos vermelhos com o capuz abaixado, lembrava-se de quando tinha uma aposta sobre os dois e brincava com a possibilidade de sua existência. "Quem poderia imaginar?", dizia para si mesma. Aconteceu e era o bastante para ir em frente. O ciclo natural do destino se quebrou quando ele a abraçou e ela respondeu. Ela gostou. Não gostava de muita coisa já fazia muito tempo. Agora queria ver o que estava por vir. Mal haviam dado as mãos e um passo em frente e tanta coisa já apontava a contra-mão. Teve medo e ele a segurou forte em seus braços. "Eu aguentarei até quando você não aguentar mais", ele disse. "Eu prometo". Ela se desfez ao sabor daquela projeção rouca tão perto daquele jeito. Poderia ser o bastante para permanecer naquela direção por mais um tempo. Não ouvia promessas com frequência, era preciso valorizar aquela. Era a única e era linda.
Ela continuou a caminhar naquela mesma direção. O vento a fez colocar a franja para trás das orelhas para que não atrapalhasse a vista. Não enxergar era só que faltava. Não podia se dar ao luxo de não ver. Sentiu algo cair do livro que carregava. Era uma foto, já antiga naquele ponto. Era uma foto da viagem dos dois para Novo México, no começo daquele ano. Ele tinha uma casa lá e eles precisavam fugir para um lugar onde não houvessem sinais de que não era para estarem ali, tão pouco juntos. Quem sabe até, onde pudessem ser apenas um. Meio como um ser a marca registrada do outro. O nome de um ser o sobrenome do outro. Eram horas e horas de viagem de carro e só ele sabia direito para onde estavam indo. Ela o observava dirigindo e pensava. Era livre, independente, solta, bem disposta, tinha seu próprio carro e pra muitos lugares, ela preferia ir dirigindo sozinha, mas oh deus, ele bem poderia assumir sua direção bem quando quisesse. "O que procura aqui?", ela disse. "Algo para procurar", respondeu enigmático. "E você vai me ajudar, o que acha?", disse sorrindo. "Acha que vamos encontrar?" ela perguntou. "Me diz você". Sim, ele poderia dirigir muita coisa em sua vida.
Scarlett passou o dedo pela foto meio amassada, deu um suspiro para voltar para onde estava e a rasgou. Passou por uma lata de lixo e a jogou lá. Sem olhar pra trás. Era preciso recuperar a autoridade de si mesma agora. Já tinha a direção, já tinha como ir, só faltava querer. E queria muito. Já estava indo inclusive, e com força total. Com gana e vontade de chegar, ainda que fosse só pra dizer que saiu do lugar, onde quer que fosse chegar, assim como estava fazendo naquele momento.
Encontrou um sebo em seu caminho. Não queria mudar seu destino, mas não resistiu. Era um lugar bem arrumado e havia terminado de ler seu livro há pouco (pela milésima vez). Era triste como um bom livro sempre é. Havia comprado aquele livro em uma livraria elegante no centro. Já tinha ouvido falar muito, mas sempre maus comentários. E se ela gostasse? A capa era agradável aos olhos e reparou que aquele era o único exemplar na estante. Ele mereceu a chance só por intrigá-la. Agora estava ali naquele sebo, prestes a trocá-lo. Olhou para a capa novamente, folheou o fim que sempre a fez se desmanchar em lágrimas não importava o humor que estava, fechou-o novamente e o entregou. Pegou dois outros livros, um que costumava ler quando era pequena e sempre quis tê-lo de volta e outro com uma aparência de semi-novo que nunca tinha ouvido falar. Motivo bastante para levá-lo. Saiu sem olhar pra trás.
Queria logo ler aquele que nunca tinha ouvido falar sobre. Quanto mais se informava sobre a história contida, mas ansiosa ficava. Continuava a andar e queria ler, mas não conseguia fazer ambas coisas ao mesmo tempo. Não, não esperaria chegar onde quer que fosse para começar a ler. Viu um taxi parado na esquina mais a frente. Soube na hora o que fazer. Entrou e pediu cordialmente ao taxista "para a 101". Pra sua casa.
Ela logo mergulhou em sua leitura e passava as páginas com rapidez impressionante. Era tão intrigante quanto achou que fosse. Na verdade, era ainda mais. Depois de um tempo, o taxi parou em um sinal e Scarlett levantou a cabeça. Olhou para fora e jurou ter visto alguém familiar. Ela continuou encarando fixamente o seu alvo e até tombava a cabeça levemente de lado para tentar reconhecer quem era aquela figura. O taxi arrancou e Scarlett perdeu de vista seja lá quem fosse. Não importava. Tinha sido um belo dia onde quase pôde provar o paraíso perfeitamente. No fim, aquele era só mais um que se perdeu em seu retrovisor.
Baseado em "A Sorta Fairy Tale" e "Scarlet's Walk", de Tori Amos.
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